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it's carol

Um blog sobre tudo. Sobre o que me apetecer. Acima de tudo, sobre o que sou.

28.Jan.20

Uma mesa à janela

Sentei-me na mesa do canto. Aquela em que mais ninguém se quer sentar porque a janela está estragada e, por isso, constantemente a abrir-se. As mães queixam-se das correntes de ar que constipam os filhos, mas os miúdos não querem saber e escapam-se-lhes num piscar de olhos lá para fora. O vidro estremece quando o grupo de crianças lhe acerta em cheio com uma bola. Cá dentro, as mesas abanam e as chávenas de café tilintam e os velhos nem se apercebem, porque a idade já lhes provou que não vale a pena ouvir todos os sons que fazem o mundo tremer.

 

O novo empregado, que se assusta mais com a ideia de deixar cair um prato do que com a de todas as janelas se estilhaçarem e deixarem feridos todos os clientes, serve-me, a medo, meia torrada e uma meia de leite a escaldar. E não consigo ter a certeza se só precisa de mais uns dias até me dizer que tomo um pequeno-almoço às metades ou se o nervosismo lhe apagou o sentido de humor. Sorrio-lhe – porque sei que, por vezes, isso é tudo o que precisamos para nos esquecermos que temos o estômago a dar voltas – mas arrependo-me no momento em que o vejo tropeçar numa das mesas, quando me tentou sorrir de volta. As voltas da vida são tramadas para quem só pede metade de um pequeno-almoço, todos os dias. Por isso, volto a olhar lá para fora.

 

Um miúdo com uma farta cabeleira preta, que mete inveja a qualquer uma das perucas que se reúnem no canto oposto ao meu a fingir ler o jornal, atira-se para cima de outro. Caem os dois no chão enquanto a bola rola até aos pés de uma rapariguinha escanzelada. O jogo continua. E, seja lá que jogo for, os miúdos e as miúdas não têm olhos para mais nada. Nem ouvidos para os pais, que pedem para participar e que cobiçam, numa infantilidade disfarçada, o momento em que aquela esfera enlameada lhes chegue aos pés. Não consigo imaginá-los noutro ambiente. A nenhum deles. Nem às crianças irrequietas obrigadas a decorar a tabuada à força, nem aos pais estafados a servirem-lhes o jantar mais cedo só para os poderem deitar finalmente.

 

A bola acerta de novo no vidro. O empregado estremece, o vidro resiste e os velhos permanecem na sua bolha de quem já viveu demasiado para aturar miúdos e graúdos. Com o impacto, a janela abre-se um pouco mais e nunca uma meia de leite a ferver me soube tão bem. O ar frio seca a manteiga que se colou às pontas dos meus dedos e, de repente, parece que uma daquelas crianças me pertence e tivéssemos passado a manhã a fazer um trabalho manual qualquer. O guardanapo desfaz-se em tiras desordenadas de papel e está por todo o lado: colado aos meus dedos pegajosos, espalhado sobre a superfície envidraçada da mesa, nas minhas calças de ganga velhas preferidas. Continuo a esfregar as mãos uma na outra, mas não me atrevo a olhar para ninguém. Os pedacinhos de papel esvoaçam sobre a mesa, alguns caem no chão, outros permanecem no precipício. A janela abre-se mais um pouco.

 

Sobressalto-me quando o som de um prato a partir-se ecoa pelo café. Temo pelo pobre rapaz, antes mesmo de o encontrar a olhar para mim e a rir. Não sei se de mim, e dos meus dedos de papel, ou dele, e dos seus nervos do primeiro dia. A bola embate na janela. O café estremece novamente. E tudo continua. Lá fora o jogo, cá dentro os pequenos-almoços inteiros e a metades.

 

A mesa do canto é a minha mesa. O meu cantinho literal neste mundo. O sítio onde os dedos sabem a manteiga, os miúdos apanham constipações, os nervos não cabem inteiros, os outros se riem connosco, os pratos se partem lá longe e o caos se resolve com uma simples corrente de ar. Sempre ouvi dizer que, se estivermos sempre quentes, nunca saberemos reconhecer o lado bom de ter frio.

 

 

É por isso que, um dia, todos se deveriam sentar na mesa do canto.

 

Carol [e uma miúda qualquer que gosta de cafés e de mesas perto de janelas]

 

A janela do canto.JPG

 

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