Telechá das cinco
De cotovelos apoiados no tampo da secretária, beberricava o chá a ferver na caneca enquanto esperava o início de uma videochamada com uma amiga – na tentativa de substituir os lanches presenciais que partilhávamos com frequência – e pensava na normalidade com que passámos a olhar para as distâncias de um mundo a duas dimensões. A vida cabe, com a maior das facilidades, em ecrãs que, se antes nos davam proximidade, agora nos recordam como estamos longe. As rotinas ajustam-se ao desfasamento entre o som e a imagem de uma internet que ameaça, com tracinhos frágeis, ter a ousadia de não facilitar as coisas. A mesma rede de que estamos dependentes para manter as redes a que sempre nos segurámos e que agora temos de escolher ver em sorrisos pixelizados ou em olhos que fazem tudo por sorrir nitidamente.
Há oito dias que trocámos o calendário. Ontem escrevi, pela primeira vez este ano, a data. No canto superior direito de uma folha. Dia-mês-ano. Claro que me enganei. Sete dias depois, os dedos ainda me atraiçoam e se lançam sobre um 2020 já ultrapassado. Não me preocupa que o tenhamos deixado para trás com tanta vontade de lhe somar um ano melhor. Mas também não me tranquiliza acreditar que o esqueceremos com facilidade. Há partes dele que ainda perduram – perdurarão, conseguimos antecipar – durante o tempo que for necessário para conseguirmos, finalmente, seguir em frente. Fosse esse rasto apenas uma data rasurada no canto superior direito de um caderno e não um mundo em que se tornou habitual encontrarmo-nos com os nossos nas mesmas “janelas” para as quais espreitamos quando queremos ver uma série ou saber o que se passa lá fora.
Entreguei-me ao conforto que me dão as páginas dos livros para esquecer que, quando outras páginas se virassem, continuaria tudo demasiado semelhante e muito pouco confortável. E deixei que as histórias de personagens a que nunca conhecerei apenas os olhos, me levassem para longe de textos zangados sobre a retrospetiva de um ano que nos deixou a todos a ver mal. Não é aterrador perceber a banalidade com que encaramos todos os abraços que deixámos, conscientemente, de dar às pessoas que [sorte a nossa!] ainda encontramos presencialmente?
É assunto que dá que pensar e, contudo, se pensarmos muito sobre ele, será extremamente difícil passar ao próximo capítulo. Acabei de ligar o aquecimento. Vou fazer um chá enquanto não começa a reunião que a professora agendou para hoje. Deduzi que não seria presencial. Há informações que, de tão óbvias que se tornaram, já não merecem ser mencionadas. A juntar ao teletrabalho, às teleamizades e à televida, pelos vistos está também um mundo a duas dimensões. E a dimensão presencial, como mostram as notícias, parece imprópria para consumo.
Alguém quer um chá?
Carol