O cliché da vida real
Não sei se é do sol de inverno. Não sei se é da rotação da Terra. Não sei que voltas a vida dá para terminar numa vida que não parece vivida aqui. Pode ser o efeito da ressaca do repouso ou o tropeçar nos dias que se mostravam demasiado longos para caberem num relógio de pulso. Pode ser a troca da banda sonora com início no despertador pelo silêncio matinal que se espreguiça e se aconchega sem nunca se revelar por completo. Deve ser isso. Isso e o renovar de um playlist que já andava a ganhar pó de tão abandonada e desatualizada que estava. Pode ser o abanar de cabeça ao som de uma música que pede um pézinho de dança ou o repeat de uma balada que pede a descodificação da letra. Pode ser o equilíbrio entre a pausa e o play. Pode e é alguma coisa, certamente. É uma vida que deixa saudades antes de acabar. Um resort que merece uma despedida demorada para que não seja possível esquecer a estadia. Pode ser do frio, dos casacos quentes e dos cachecóis que abrigam o pescoço. Pode e deve ser das mãos enfiadas nos bolsos à espera da chegada do calor. Pode ser uma data de reuniões que o planeta tratou de agendar para o mesmo dia, à mesma hora, no mesmo lugar.
Não sei se me idealizaram ou se fui escolhida num casting. Não sei se o cenário foi desenhado propositadamente. Não sei se me tornei personagem de uma qualquer história cliché. Só sei que me senti a seguir as deixas de um guião que alguém um dia escreveu e espalhou por aí. Sentada num cadeirão grande e confortável, de auscultadores nos ouvidos, volume da música no máximo, copo de café com leite a escaldar numa mão, um livro por iniciar na outra, os raios de sol a entrarem pela janela mesmo à minha frente e uma cidade sedenta de atenção do outro lado do vidro. Pode até ter sido um sonho. Pode até ter sido desenhado. Pode ter sido tudo em tão pouco tempo. E foi.
Não sei se é do sol de inverno. Não sei se é da rotação da Terra. Não sei que voltas a vida dá para terminar numa vida que não parece vivida aqui. E ali estava eu. De frente para uma janela. As janelas inspiram-me. E, se estava a sonhar, então sonhei como se quer: com o mundo a acontecer à minha frente.
Não sei. Mas não duvido que este momento está escrito algures numa página perdida ou numa cena esquecida. E, quando a vida parece um filme, o melhor mesmo é seguir as indicações e não perder a deixa.
Carol