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it's carol

Um blog sobre tudo. Sobre o que me apetecer. Acima de tudo, sobre o que sou.

22.Jan.21

Antes de dias de sol

Lá vais tu. De passo apressado, empurrado à força pelo vento e como que obrigado a fugir da chuva que se esconde atrás do mau feitio das nuvens. Ao longe, quem te veja esfregar as mãos uma na outra com esse fervor, até pensa que te preparas para pôr em prática um plano maquiavélico digno do policial da sessão da meia noite. Ao perto, estás só a espalhar o álcool gel entre os dedos. Ainda por cima, é um daqueles que deixa as mãos pegajosas, impróprias para utilizar em simultâneo com um casaco de pelo. Mas isso não te incomoda. Abrigas-te num capuz que serviria perfeitamente para duas cabeças, guardas as mãos nos bolsos e, agora sim, pareces mesmo um assassino em série.

 

Era bom que tudo isto não passasse de ficção barata, não era?

 

Cruzas-te com duas pessoas que, só pelos olhos e pelos penteados nada favorecidos pelo temporal, nem sequer consegues perceber se conheces. Elas também não parecem preocupadas em detetar caras familiares. Já ninguém perde tempo com conversas de circunstância. Trocam um aceno de cabeça cordial que, convertido em meia dúzia de palavras, significa um solidário “cá estamos”. E estamos. Vamos andando, como dirias a meio de uma boa conversa de circunstância, não fosse já ninguém perder tempo nem ter paciência para isso.

 

Tu vais andando. A pensar que os dias se tornaram triviais, alguns demasiado iguais e outros aparentemente fatais. Sabe-te bem fazer um percurso diferente dos 15 passos habituais entre o quarto e a cozinha. Tens consciência que és um sortudo por te poderes queixar de uma vida protegida debaixo de um teto e entre quatro paredes. Nem todos têm essa sorte. E tu sabe-lo. Porque a toda a hora ouves o privilégio gritar-te em ecrãs com imagens que não queres ignorar, mas que te arrepiam até à ponta dos dedos.

 

Endireitas as costas. É difícil manter a postura quando vemos o mundo revelar as suas piores facetas. E mesmo assim não abrandas o passo. Talvez andes à procura da saída.

 

E lá vais tu. Espero que a encontres. Ou que, pelo menos, chegues a casa antes de começar a chover.

 

Carol

 

Antes de dias de sol.JPG

 

15.Jan.21

Pés frios e um par de meias

Na minha rua morava uma velhinha que tinha sempre os pés frios. Às vezes gelados.

 

As manhãs passavam-se à meia luz do sol naquele rés-do-chão. Os estores, puxados para cima por alguém sem força ou muito preguiçoso, deixavam a descoberto um vislumbre do tecido coçado dos cortinados. Talvez fosse apenas o efeito dos vidros muito sujos que os fazia parecer terem muitas histórias para contar. A porta da rua precisava há anos, mais do que aqueles que conseguimos contar pelos dedos das mãos e dos pés, de ser substituída. A fechadura só ali estava para fazer cerimónia. Qualquer pessoa sabia que bastava um empurrão ao de leve para a porta se abrir. Esse era um dos motivos por que ninguém encostava os nós dos dedos na tinta quase inexistente. A porta só se abria para a velhinha e para os gatos mais travessos que ali quisessem pernoitar. Para os outros, havia a janela.

 

Na minha rua morava uma velhinha que tinha sempre os pés frios. Às vezes gelados.

 

As tardes, como que alavancadas pela força de uma boa refeição ao meio dia, permitiam a entrada do sol, que àquelas horas era já discreto e fugidio. Os estores escondiam-se para mostrar, sem vergonhas, a sujidade dos vidros que precisavam de uma limpeza ao mesmo número de anos que a porta precisava de uma substituição. E os cortinados continuavam a parecer demasiado gastos, talvez até cansados de estarem pendurados com uma visão tão obstruída pelo tempo que ninguém fez questão de limpar. Todos sabiam que as janelas se abriam assim que o pivô do telejornal da tarde anunciava a meteorologia. Primeiro, apenas uma frecha, como se a casa pudesse desabar com o choque de receber ar puro. Depois, por volta da hora em que as pessoas começavam a regressar às suas casas, lá aparecia a velhinha. Apoiava os cotovelos no parapeito de pedra e inclinava-se tanto para a frente que, se morasse no andar de cima, poderia ter tido, à vista de todos, um desfecho bem triste. Ao lado dos braços magros, deixava sempre um par de meias que poderia ser feito do mesmo tecido das cortinas, de tão corroído que estava. Os miúdos que passavam, com mochilas maiores do que eles às costas, sorriam-lhe timidamente. Os vizinhos, habituados àquela rotina antiga, acenavam-lhe educadamente. “Como vai?”, atreviam-se alguns a perguntar, mais por respeito às rugas vincadas no rosto do que por vontade de fazer conversa. “Ah, tenho os pés frios. Mas, à parte disso, cá estamos para mais um dia”, era sempre esta a resposta da velhinha, que parecia tão velhinha que no café da esquina chegaram a apostar que seria impossível, no seu aniversário, alguém acender todas velas sem pegar fogo ao bolo. Claro que a aposta não deu em nada. Ninguém fazia ideia em que dia a velhinha fazia anos. Ninguém sabia sequer o seu nome. Ninguém a conhecia para além das suas rotinas e da sua mania, inusitada aos olhos de todos, de estender um par de meias no parapeito. Aqui na rua era conhecida pela velhinha que tinha sempre os pés frios. Às vezes gelados.

 

Do lado de fora, as noites eram rápidas e sossegadas. As janelas voltavam a fechar-se. Os estores caíam desleixados na pedra, com um estrondo, como se quisessem chamar a atenção para algo que todos se recusavam a ver. Deixava de haver cotovelos e meias e rugas. Até à tarde seguinte, depois da hora da meteorologia, não havia nada para ver do lado de fora daquela casa deteriorada.

 

Um dia, uma manhã imitou as noites. E depois a tarde imitou essa manhã. Os estores nunca mais se voltaram a abrir, nem devagar nem depressa. O resto vocês já sabem.

 

Na minha rua, onde em tempos morara uma velhinha que tinha sempre os pés frios - às vezes gelados -, está agora a ser construída uma casa nova. Finalmente substituíram a porta velha, embora já ninguém perca tempo a olhar para lá. Acabaram-se as apostas no café da esquina e os miúdos, no regresso da escola ao final da tarde, dispersam por outras ruas menos obstruídas.

 

Nunca ninguém perguntou à velhinha por que não calçava as meias. Nunca ninguém se ofereceu para a ajudar a calçá-las. Nunca ninguém lhe comprou um par novo e quente. Mas todos lhe conheciam os pés sempre frios. Às vezes gelados.

 

Talvez uma alma aquecida por um segundo de atenção, viva melhor do que dois pés a sobreviverem dentro de um par de meias estendido ao sol. Ou de cortinados velhos. Ou de uma porta deteriorada. Nunca lhe perguntei.

 

Carol

 

Pés frios e um par de meias.JPG

 

08.Jan.21

Telechá das cinco

De cotovelos apoiados no tampo da secretária, beberricava o chá a ferver na caneca enquanto esperava o início de uma videochamada com uma amiga – na tentativa de substituir os lanches presenciais que partilhávamos com frequência – e pensava na normalidade com que passámos a olhar para as distâncias de um mundo a duas dimensões. A vida cabe, com a maior das facilidades, em ecrãs que, se antes nos davam proximidade, agora nos recordam como estamos longe. As rotinas ajustam-se ao desfasamento entre o som e a imagem de uma internet que ameaça, com tracinhos frágeis, ter a ousadia de não facilitar as coisas. A mesma rede de que estamos dependentes para manter as redes a que sempre nos segurámos e que agora temos de escolher ver em sorrisos pixelizados ou em olhos que fazem tudo por sorrir nitidamente.

 

Há oito dias que trocámos o calendário. Ontem escrevi, pela primeira vez este ano, a data. No canto superior direito de uma folha. Dia-mês-ano. Claro que me enganei. Sete dias depois, os dedos ainda me atraiçoam e se lançam sobre um 2020 já ultrapassado. Não me preocupa que o tenhamos deixado para trás com tanta vontade de lhe somar um ano melhor. Mas também não me tranquiliza acreditar que o esqueceremos com facilidade. Há partes dele que ainda perduram – perdurarão, conseguimos antecipar – durante o tempo que for necessário para conseguirmos, finalmente, seguir em frente. Fosse esse rasto apenas uma data rasurada no canto superior direito de um caderno e não um mundo em que se tornou habitual encontrarmo-nos com os nossos nas mesmas “janelas” para as quais espreitamos quando queremos ver uma série ou saber o que se passa lá fora.

 

Entreguei-me ao conforto que me dão as páginas dos livros para esquecer que, quando outras páginas se virassem, continuaria tudo demasiado semelhante e muito pouco confortável. E deixei que as histórias de personagens a que nunca conhecerei apenas os olhos, me levassem para longe de textos zangados sobre a retrospetiva de um ano que nos deixou a todos a ver mal. Não é aterrador perceber a banalidade com que encaramos todos os abraços que deixámos, conscientemente, de dar às pessoas que [sorte a nossa!] ainda encontramos presencialmente?

 

É assunto que dá que pensar e, contudo, se pensarmos muito sobre ele, será extremamente difícil passar ao próximo capítulo. Acabei de ligar o aquecimento. Vou fazer um chá enquanto não começa a reunião que a professora agendou para hoje. Deduzi que não seria presencial. Há informações que, de tão óbvias que se tornaram, já não merecem ser mencionadas. A juntar ao teletrabalho, às teleamizades e à televida, pelos vistos está também um mundo a duas dimensões. E a dimensão presencial, como mostram as notícias, parece imprópria para consumo.

 

Alguém quer um chá?

 

Carol

 

Telechá das cinco.JPG