Na minha rua morava uma velhinha que tinha sempre os pés frios. Às vezes gelados.
As manhãs passavam-se à meia luz do sol naquele rés-do-chão. Os estores, puxados para cima por alguém sem força ou muito preguiçoso, deixavam a descoberto um vislumbre do tecido coçado dos cortinados. Talvez fosse apenas o efeito dos vidros muito sujos que os fazia parecer terem muitas histórias para contar. A porta da rua precisava há anos, mais do que aqueles que conseguimos contar pelos dedos das mãos e dos pés, de ser substituída. A fechadura só ali estava para fazer cerimónia. Qualquer pessoa sabia que bastava um empurrão ao de leve para a porta se abrir. Esse era um dos motivos por que ninguém encostava os nós dos dedos na tinta quase inexistente. A porta só se abria para a velhinha e para os gatos mais travessos que ali quisessem pernoitar. Para os outros, havia a janela.
Na minha rua morava uma velhinha que tinha sempre os pés frios. Às vezes gelados.
As tardes, como que alavancadas pela força de uma boa refeição ao meio dia, permitiam a entrada do sol, que àquelas horas era já discreto e fugidio. Os estores escondiam-se para mostrar, sem vergonhas, a sujidade dos vidros que precisavam de uma limpeza ao mesmo número de anos que a porta precisava de uma substituição. E os cortinados continuavam a parecer demasiado gastos, talvez até cansados de estarem pendurados com uma visão tão obstruída pelo tempo que ninguém fez questão de limpar. Todos sabiam que as janelas se abriam assim que o pivô do telejornal da tarde anunciava a meteorologia. Primeiro, apenas uma frecha, como se a casa pudesse desabar com o choque de receber ar puro. Depois, por volta da hora em que as pessoas começavam a regressar às suas casas, lá aparecia a velhinha. Apoiava os cotovelos no parapeito de pedra e inclinava-se tanto para a frente que, se morasse no andar de cima, poderia ter tido, à vista de todos, um desfecho bem triste. Ao lado dos braços magros, deixava sempre um par de meias que poderia ser feito do mesmo tecido das cortinas, de tão corroído que estava. Os miúdos que passavam, com mochilas maiores do que eles às costas, sorriam-lhe timidamente. Os vizinhos, habituados àquela rotina antiga, acenavam-lhe educadamente. “Como vai?”, atreviam-se alguns a perguntar, mais por respeito às rugas vincadas no rosto do que por vontade de fazer conversa. “Ah, tenho os pés frios. Mas, à parte disso, cá estamos para mais um dia”, era sempre esta a resposta da velhinha, que parecia tão velhinha que no café da esquina chegaram a apostar que seria impossível, no seu aniversário, alguém acender todas velas sem pegar fogo ao bolo. Claro que a aposta não deu em nada. Ninguém fazia ideia em que dia a velhinha fazia anos. Ninguém sabia sequer o seu nome. Ninguém a conhecia para além das suas rotinas e da sua mania, inusitada aos olhos de todos, de estender um par de meias no parapeito. Aqui na rua era conhecida pela velhinha que tinha sempre os pés frios. Às vezes gelados.
Do lado de fora, as noites eram rápidas e sossegadas. As janelas voltavam a fechar-se. Os estores caíam desleixados na pedra, com um estrondo, como se quisessem chamar a atenção para algo que todos se recusavam a ver. Deixava de haver cotovelos e meias e rugas. Até à tarde seguinte, depois da hora da meteorologia, não havia nada para ver do lado de fora daquela casa deteriorada.
Um dia, uma manhã imitou as noites. E depois a tarde imitou essa manhã. Os estores nunca mais se voltaram a abrir, nem devagar nem depressa. O resto vocês já sabem.
Na minha rua, onde em tempos morara uma velhinha que tinha sempre os pés frios - às vezes gelados -, está agora a ser construída uma casa nova. Finalmente substituíram a porta velha, embora já ninguém perca tempo a olhar para lá. Acabaram-se as apostas no café da esquina e os miúdos, no regresso da escola ao final da tarde, dispersam por outras ruas menos obstruídas.
Nunca ninguém perguntou à velhinha por que não calçava as meias. Nunca ninguém se ofereceu para a ajudar a calçá-las. Nunca ninguém lhe comprou um par novo e quente. Mas todos lhe conheciam os pés sempre frios. Às vezes gelados.
Talvez uma alma aquecida por um segundo de atenção, viva melhor do que dois pés a sobreviverem dentro de um par de meias estendido ao sol. Ou de cortinados velhos. Ou de uma porta deteriorada. Nunca lhe perguntei.
Carol